Linea d'ombra - anno VI - n. 24 - febbraio 1988

STORIE/GUIMARAES ROSA ATERCEIUMARGEMDORIO Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocin- · ho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informaçao. Do que eu mesmo me alembro, ele nao figurava mais esturdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. S6 quieto. Nossa mae era quem regia, e que ralhava no diario com a gente - minha irma, meu irmao e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si urna canoa. Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhatico, pequena, mal com a tabuinha da pòpa, corno para caber justo o remador. Mas teve de ser tòda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, propria para dever durar na agua por uns vinte ou trinta anos. Nossa mae jurou muito contra a idéia. Seria que, ele, que nessas artes nao vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada nao dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais pròxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por ai se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de nao se poder ver a forma da outra beira. E esquecer nao posso, do dia em que a canoa ficou pronta. Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, nao pegou matula e trouxa, nao fez a alguma recomendaçao. Nossa mae, a gente achou que eia ia esbravejar, mas persistiu sòmente alva de palida, mascou o beiço e bramou: - "Ce vai, oce fique, voce nunca volte!" Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mae, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propòsito perguntei: - "Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?" Éle sò retornou o olhar em mim, e me botou a bençao, com gesto me mandando para tras. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota domato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo - a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa. Nosso pai nao voltou. Éle nao tinha ido a nenhuma parte. S6 executava a invençao de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela nao saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que nao havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho. Nossa mae, vergonhosa, se portou con muita cordura; por isso, todos pensaram de nosso pai a razao em que nao queriam falar: doideira. Sò uns achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe, por escrupulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua familia dele. As vozes das noticias se dando pelascertas pessoas-passacjores, moradores das beiras, até do afastado da outra banda-descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tornar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma corno cursava no rio, solto solitariamente. Entao, pois, nossa mae e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava; e, ele, ou desembarcava e viajava s'embora, para jamais, o que ao menos se condizia mais correlo, ou se arrependia, por urna vez, para casa. No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um tanto de comida furtada: a idéia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura, broa de pao, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de urna hora, tao custosa para sobrevir: sò assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, nao remou para ca, nao fez sinal. Mostrei o de corner, deposi/.ei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa mae sabia desse meu encargo, sò se encobrindo de nao saber; eia mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o· meu conseguir. Nossa mae muito nao se demonstrava. Mandou viro tio nosso, irmao dela, para auxiliar na fazenda e nos negòcios. Mandou vir o mestre, para nòs, os meninos. lncumbiu ao padre que um dia se revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o dever de desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois soldados. Tudo o 1juenao valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. Mesmo quando foi, nao faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato dele, nao venceram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejao~ léguas, que ha, por entre juncos e mato, e sò ele conhecesse, a palmos, a escuridao daquele. A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que nao queria, sò com nosso pai me achava: assunto que jogava para tras meus pensamentos. O severo que era, de nao se entender, de maneira nenhuma, corno ele agiientava. De dia e de noite, èom sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terriveis de meio-do-ano, sem arrumo, sò com o chapéu velho na cabeça, por tòdas as semanas, e meses, e os anos - sem fazer conta do se-irdo viver. 36 Nao pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, nao pisou mais em chao nem capim. Por certo, ao menos, que, para dormir seu tanto, ele fizesse amarraçao da canoa, em alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas nao armava um foguinho em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fòsforo. O que consumia de corner, era sò um quase; mesmo do que a gente depositava, no entre as raizes da gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastavel. Nao adoecia? E a constante fòrça dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento, ai quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-arvore descendo - de espanto de esbarro. E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma. N6s, também, nao falavamos mais nele. Sò se pensava. Nao, de nosso pai nao se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era sò para se despertar de novo, de repente, com a mem6ria, no passo de outros sobressaltos. Minha irma se casou; nossa mae nao quis festa. A gente imaginava nele, quando se comia urna comida mais gostosa; assim corno, no gasalhado da noite, no desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai s6 com a mao e urna cabaça para ir esvaziando a canoa da agua do tempora!. As vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pelos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia. Nem queria saber de n6s; nao tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: - "Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim... "; o que nao era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele nao se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, entao, nao subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no nao-encontravel? Sò ele soubesse. Mas minha irma teve menino, eia mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos, todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irma de vestido branco, que tinha sido o do casamento, eia erguia nos braços a criancinha, o marido dela segurou, para defender os dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai nao apareceu. Minha irma chorou, n6s todos ai choramos, abraçados. Minha irma se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmao resolveu e se foi, para urna cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mae terminou indo também, de urna vez, residir com minha irma, eia estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei - na vagaçao, no rio no ermo - sem dar razao de seu feito. Seja que, quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-que-disseram: que constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicaçao, ao homen que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem ja tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordaçao de nada, mais. Sò as falsas conversas, sem senso, corno por ocasiao, no ci:>meço,na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que nao estiavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam: que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu nao podia malsinar. E apontavam ja em mim uns primeiros cabelos brancos. Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausència: e o rio - rio - rio, o rio - pondo perpétuo. Eu sofria ja o começo de velhice-esta vida era sò o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ansias, ca de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por que? Devia de padecer demais. De tao idoso, nao ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na !evada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coraçao. Éle estava la, sem a minha tranqiiilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse - se as coisas fossem outras. E fui tornando idéia. Sem fazer véspera. Sou doido? Nao. Na nossa casa, a palavra doido nao se falava, nunca mais se falou, os anos todos, nao se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, entao, todos. S6 fiz, que fui la. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, ai e la, o vulto. Estava ali, sentado à pòpa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: - "Pai, o senhor esta velho, ja fez o seu tanto ... Agora, o senhor vem, nao carece mais ... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!. .. " E, assim dizendo, meu coraçao bateu no compasso do mais certo. Éle me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'agua, proava para ca, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto - o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu nao podia ... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de la, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdao. · Sofri o grave frio dos mèdos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. So homem, depois desse falimento? Sou o que nao foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, entao, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa agua, que nao para, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro - o rio.

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